Depois de me debruçar, na semana
passada, em uma palestra com estudantes de Direito da Faculdade de Ciências
Humanas - SOPECE, aqui no Estado de Pernambuco, onde debatemos sobre o crime de
tortura no âmbito do direito penal, tema de grande relevância, trago aos amigos
leitores, um sucinto estudo sobre o assunto, com a finalidade de contribuir com
o conhecimento dos nobres internautas.
Pois bem. A tortura foi, nos séculos passados,
admitida por diversos reinos europeus, por ser considerada “um meio eficaz para
o descobrimento da verdade”. Portanto, com o advento do Iluminismo, a tortura
começou a ser abolida no mundo.
Apesar dessa suposta abolição, no
Brasil, sua prática continuou por motivações políticas, ocorrendo, sobretudo,
no estado novo entre os anos de 1937 e 1945, bem como no regime militar que se
deu entre 1964 e 1985.
Mesmo assim, nos dias atuais, a tortura
como meio de apuração policial faz parte do cotidiano das delegacias
brasileiras, onde a precariedade dos meios de apuração, a falta de punição e
uma silenciosa complacência social estimulam essa prática covarde.
Apesar desse histórico e de a
Constituição de 1988 determinar que a prática de tortura não possibilitaria o
benefício da fiança, anistia ou graça, apenas em 1997 o Brasil regulamentou o
crime de tortura, através da Lei 9.455/97.
Em resumo, podemos assegurar que a
tipificação do crime de tortura fica condicionada ao preenchimento cumulativo de
três elementos:
O meio empregado + as consequências
sofridas pela vítima + a finalidade pretendida (dolo pretendido ou o motivo).
De certa forma, há uma pluralidade de
bens jurídicos ofendidos, como as garantias fundamentais da pessoa humana e o
exercício da função pública. Além disso, obviamente, há uma ofensa a bens
jurídicos individuais, como a liberdade e a integridade física ou psíquica.
Características
comuns a todas as modalidades de tortura:
·
É
um crime material;
·
Admite
tentativa e a desistência voluntária;
·
Não
admite o arrendamento eficaz e nem o arrependimento posterior;
·
Ação
penal pública incondicionada.
Só
lembrando que desistência voluntária ocorre quando o agente,
voluntariamente, interrompe a execução do crime. (Essa figura exige que a desistência
ocorra em meio à prática dos atos executórios).
Já
o instituto do arrependimento eficaz se dá quando o agente esgota todos os
meios executórios, mas na sequência, antes da consumação, impede,
voluntariamente o resultado, por vontade própria, evitando a sua produção.
E
o Arrependimento posterior é possível nos crimes sem violência ou grave ameaça
a pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia
ou queixa, por ato voluntário do agente, ocasião em que a pena pode ser diminuída
em até dois terços.
Vamos
as espécies de tortura.
Tortura
indagatória
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de
violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação,
declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de
natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou
religiosa;
Esse tipo não exige nenhuma condição
especial do sujeito ativo ou do sujeito passivo. Qualquer pessoa pode ser autor
ou vítima desse delito.
O núcleo do tipo é verbo constranger e tem
o sentido de coagir, violentar, obrigar. Está presente o sentido de sujeição da
vítima à força do agente.
Para que seja típica, a tortura tem que
ser praticada com violência ou grave ameaça. A violência significa o emprego da
força física sobre o corpo da vítima, com a qual se anula sua resistência. A
grave ameaça é a chamada violência moral, com a qual se promete um mal futuro e
grave à vítima ou a alguém conhecido dela.
Como crime material, exige, também, o
tipo, a produção do resultado sofrimento físico ou mental. O resultado é o
sofrimento e não eventual lesão corporal.
Cuida registrar, que o crime de tortura
só pode ser praticado com dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de
produzir, mediante violência ou grave ameaça, sofrimento físico ou mental. Além
do dolo, o tipo exige um dentre os três elementos subjetivos do tipo, expressos
nas alíneas “a”, “b” e “c”. Tratando-se de elemento subjetivo, obviamente, não
é necessário que o objetivo do agente se concretize, basta que haja a
finalidade.
Por outro lado, a consumação do crime de
tortura ocorre no momento em que se dá o sofrimento físico ou mental,
independentemente da ocorrência do objetivo do agente. É possível a tentativa,
já que se trata de crime plurissubsistente.
Tortura-castigo
Art.
1º Constitui crime de tortura:
(…)
II – submeter alguém, sob sua guarda,
poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de
caráter preventivo.
Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Nesse caso, ao contrário da tortura
descrita no inciso I, esse tipo descreve um crime próprio, que exige condição
especial do sujeito ativo, bem como do sujeito passivo. O sujeito passivo tem
que estar sob guarda, poder ou autoridade.
Verifique que o verbo submeter tem o
sentido de “subjugar, vencer, dominar, avassalar, domar, sujeitar, subordinar”.
Assim, além do dolo, há o elemento subjetivo
do tipo, que é o fim de castigar ou aplicar medida preventiva. Castigo é a
punição imposta em razão de uma conduta faltosa. Medida preventiva é aplicada
para que o sujeito não venha a praticar determinadas condutas. Se a tortura for
gratuita, sem um fim concreto, não haverá esse delito.
Com relação a essa modalidade de
tortura, a consumação do crime ocorre no momento em que ocorre o sofrimento
físico ou mental, sem necessidade de qualquer lesão. A tentativa é possível,
desde que o agente tenha iniciado a execução do crime, mas não tenha causado,
por razões alheias a sua vontade, o intenso sofrimento físico ou mental.
Tortura
do preso
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete
pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por
intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida
legal.
Esta é a tortura praticada contra presos
e ou pessoas submetidas a medida de segurança. O sujeito ativo é qualquer
pessoa, não exigindo a lei qualquer condição especial. Quanto ao sujeito
passivo, contudo, só poderá ser aquele que se encontrar em prisão.
Nesse tipo de tortura a lei não exige
como meio de prática deste delito a violência ou grave ameaça, embora não os
exclua. Com efeito, é perfeitamente possível que se imponham graves sofrimentos
mentais sem o emprego de violência ou grave ameaça.
É importante registrar, que o tipo
subjetivo é composto exclusivamente do dolo, sem elemento subjetivo do tipo.
Dentre os três tipos de tortura, este é o único que não menciona uma finalidade
do agente.
Omissão
frente à tortura
§ 2º Aquele que se omite em face dessas
condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de
detenção de um a quatro anos.
Aqui, a lei pune com pena de detenção de
um a quatro anos. Observe que para o crime omissivo o legislador instituiu uma pena
bem mais branda que a forma principal, tanto quem concorre para a prática de
tortura, mediante omissão, como quem deixa de investigar sua ocorrência.
Por conseguinte, há que se fazer a
distinção entre aquele que tinha o dever de evitar e o que tinha o dever de
investigar. Embora, em análise superficial, pareça que só o funcionário público
pode ser sujeito ativo da primeira modalidade de omissão (de evitar), o tipo
não restringe, nem explicita nem implicitamente, a prática do crime ao
funcionário.
Se na hipótese do inciso II, o pai ou a
mãe podem figurar como sujeito ativo de tortura, é inegável que a omissão de um
frente à conduta ativa de outro, configura a primeira modalidade de omissão.
Assim, se o pai inflige intensos sofrimentos físicos ao filho e a mãe se omite,
por ter dever legal de impedir o resultado, desde que fosse possível evitar, a
mãe pratica o crime do § 2º.
Quanto à segunda omissão (de apuração),
o sujeito ativo somente pode ser o funcionário público, que tem o dever de
apurar a conduta criminosa.
Formas
qualificadas pelo resultado
§ 3º Se resulta lesão corporal de
natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se
resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
Aqui o legislador assegurou, de forma
segura, que as formas qualificadas pelo resultado lesão corporal grave ou morte
configuram crimes preterdolosos. Assim, para que haja tal delito, o resultado
não pode ter sido causado dolosamente. Ou seja, se houve dolo (direto ou
eventual) no resultado morte, haverá crime de homicídio.
Causas
de aumento de pena
4º Aumenta-se a pena de um sexto até um
terço:
I – se o crime é cometido por agente
público;
II – se o crime é cometido contra criança,
gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
III – se o crime for cometido mediante sequestro.
Especial
condição da vítima
Criança: prevalece a definição do ECA,
criança é o menor de 12 anos. Gestante: estando grávida a mulher, aplica-se a
majorante, independentemente do tempo, mas desde que o torturador saiba da
gravidez. Portador de deficiência: qualquer que seja a deficiência, física ou
mental. Adolescente: é o menor de 18 e maior de 12 anos. Maior de 60 anos.
Tortura
mediante sequestro
Conforme visto, está configurada no
Inciso II, do § 4º. É o meio para a prática de tortura, com o qual a vítima não
pode oferecer resistência, por encontrar-se subjugada. Para que haja esse
aumento, é necessário que o sequestro se limite ao meio para a tortura, pois se
for feito sem esse fim e ocorrer dissociado da tortura, quer porque tenha
começado bem antes, quer porque permaneceu após a tortura. Haverá concurso
material entre os crimes de tortura e de sequestro (art. 148).
Efeitos
da condenação
§ 5º A condenação acarretará a perda do
cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro
do prazo da pena aplicada. Trata-se de efeito automático da condenação, que
independe de expressa declaração na sentença.
Fiança,
graça ou anistia
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia. O STF já se pronunciou nesse sentido.
Regime
inicial de cumprimento de pena
§ 7º O condenado por crime previsto
nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime
fechado.
Assim sendo, depois de explanarmos de
forma breve as peculiaridades do crime de tortura, conclui-se que esse tipo de
delito é, sem dúvidas, um dos mais cruéis e covardes que existe na sociedade. A
conscientização é a forma mais objetiva e eficaz de se combater esse tipo de
crueldade. O Direito é a ferramenta garantidora, mediante a aplicação das leis,
como forma punitiva e reprobatória aos agentes públicos ou privados que
insistam em agir como homem primitivo.