Após 30 anos,
execução penal deve enfrentar reformas para efetivar punições e assegurar
direitos
Editada em 1984,
a Lei de Execuções Penais (LEP) deve passar por reformas profundas em breve. O
Senado Federal encomendou um anteprojeto a juristas e profissionais da área. A
comissão responsável pelos estudos foi instalada no último dia 4, sob a
presidência do ministro Sidnei Beneti, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Para o ministro,
a lei atual é boa, inspirada por elevados valores humanitários. O objetivo da
LEP é respeitar o ser humano condenado, permitindo sua recuperação pessoal,
reinserção e manutenção do convívio em sociedade.
Porém, segundo o
presidente da comissão de juristas, a realidade não pode ser ignorada. E a
realidade é que o dia a dia da execução penal no Brasil não atinge seus
objetivos nucleares nem proporciona proteção à sociedade e prevenção da
criminalidade.
Superlotação e
impunidade
De acordo com o
ministro, de um lado os condenados são mantidos em presídios superlotados,
muitos com penas já cumpridas, soterrados por procedimentos burocráticos.
De outro,
afirma, “a sociedade recolhe o microtraumatismo repetidamente visto e noticiado
da sensação de impunidade, diante da ineficácia da lei penal. A sociedade
suporta a devolução de pessoas perigosas ao convívio livre com vítimas e
testemunhas, prodigalizando o retorno do medo à vida diária. Nociva sensação de
abandono do agir honesto, do respeito às leis e às instituições”.
Ao longo desses
anos, o STJ tem enfrentado diversas questões relativas ao tema. Confira nesta
reportagem especial alguns dos assuntos tratados pela LEP e que devem ser
discutidos pela comissão de juristas.
Súmulas
Seis súmulas do
STJ abordam diretamente a execução penal. A mais recente, de número 493, impede
que seja aplicada como condição para o regime aberto uma situação já
classificada pelo Código Penal como pena substitutiva autônoma.
O entendimento
foi fixado no Recurso Especial repetitivo 1.107.314. Para os ministros, exigir
que o condenado prestasse serviços à comunidade para obter o regime aberto
resultaria em dupla penalização.
Conforme o
ministro Napoleão Nunes Maia Filho, as “condições especiais” possíveis para a
fixação do regime aberto devem se identificar com medidas de caráter educativo,
profissionalizante, de valorização da cidadania ou acompanhamento psicológico
ou médico.
Salto
Por outro lado,
a Súmula 491 impede a progressão de regime “por salto”. Ou seja: é ilegal a
progressão direta do regime fechado ao aberto.
Em um dos
precedentes considerados para edição do verbete (HC 191.223), o preso tinha o
direito de passar ao regime semiaberto desde 2006, mas foi mantido em regime
fechado até 2009 por falta de vagas em estabelecimento adequado ao regime mais
brando.
O juiz da
execução autorizou a progressão retroativa, em vista do atraso na implementação
do benefício, contando o prazo como se o preso estivesse já no regime
semiaberto desde 2006. Assim, antes mesmo de ser efetivamente transferido a
esse regime, ele já deveria passar ao regime aberto. Para os ministros, no
entanto, o entendimento contraria a LEP, que impõe que o preso cumpra um sexto
da pena no regime fixado, antes de poder progredir.
Exame
criminológico
O prazo é o
requisito objetivo para a progressão. O requisito subjetivo está retratado na
Súmula 439. O verbete autoriza a realização do exame criminológico como requisito
para a progressão, desde que justificado em cada caso específico.
Até 2003, a lei
obrigava o exame em todos os casos. A nova redação exigiu “bom comportamento” e
motivação da decisão pela progressão. Para o STJ, apesar de não ser mais
obrigatório, o laudo pericial para aferir a adequação do preso à realidade do
regime mais brando é um instrumento a serviço do juiz, quando este entenda
necessário e fundamente sua opção (HC 105.337).
Prisão
domiciliar
Mas se a
progressão por salto é vedada, o STJ também não admite que o condenado cumpra
pena em regime mais grave que o merecido. Assim, se não há vaga em
estabelecimento adequado ao regime a que faz jus o preso, ele deve ser mantido
em regime mais brando.
No HC 181.048,
por exemplo, o ministro Gilson Dipp garantiu a condenado a regime semiaberto
que aguardasse em regime aberto, ou mesmo em prisão domiciliar, o surgimento da
respectiva vaga. Para o Tribunal, a inércia do poder público não autoriza o
recolhimento do condenado em regime mais severo.
O STJ também
admite a prisão domiciliar para condenados ao regime fechado, excepcionalmente,
em caso de necessidade de tratamento médico impossível de ser prestado no
presídio.
Saída temporária
Já em 1992, o
STJ editou também a Súmula 40, ainda aplicável. O verbete prevê que, para a
obtenção dos benefícios da saída temporária e do trabalho externo, basta ao réu
que esteja em regime semiaberto e tenha cumprido um sexto do total da pena, não
necessariamente nesse regime.
O entendimento
foi aplicado, por exemplo, no HC 134.102, de 2009, no qual o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro negava ao condenado a visita periódica ao lar por
conta do pouco tempo em que se encontrava no regime semiaberto. A Quinta Turma
aplicou a súmula e concedeu o benefício ao preso.
Crimes hediondos
A Lei dos Crimes
Hediondos, de 1990, originalmente impedia qualquer progressão de regime aos
condenados pelas práticas nela listadas. Porém, o Supremo Tribunal Federal
(STF), acolhendo entendimento já manifestado pelo próprio STJ, entendeu que a
lei era inconstitucional.
O Congresso
editou nova lei em 2007, permitindo a progressão para tais crimes, mas com
prazos maiores em cada regime do que os previstos na LEP. Para o Ministério
Público, como a lei mais nova permitia a progressão antes vedada, ela era mais
benéfica e deveria ser aplicada mesmo para crimes cometidos entre 1990 e 2007.
Mas o STJ
consagrou na Súmula 471 o entendimento de que a nova norma é mais prejudicial.
No HC 83.799, um dos precedentes que a embasaram, os ministros esclareceram
que, diante da inconstitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos original, a
única legislação aplicável naquele período seria a LEP.
Assim, a nova
lei, ao aumentar de um sexto para dois quintos (ou três quintos, no caso de
reincidência) os prazos para progressão, é mais prejudicial ao condenado e
inaplicável para os fatos anteriores à sua vigência.
Remição pelo
estudo
Em 2003, o STJ
já reconhecia o direito do preso à remição de pena pelo estudo, incorporado à
legislação em 2011. O entendimento foi fixado também na Súmula 371. Pela
remição, o preso ganha um “desconto” no tempo da pena, de um dia a cada três de
trabalho ou de estudo.
Para o ministro
Gilson Dipp, relator do Recurso Especial 445.942, que embasou o enunciado, o
objetivo da LEP ao prever o desconto de pena pelo trabalho é incentivar o bom
comportamento e a readaptação do preso ao convívio social.
Assim, a
interpretação extensiva da lei, para permitir igual desconto pelo estudo,
atende a seus objetivos e dá aplicação correta ao instituto. “A educação formal
é a mais eficaz forma de integração do indivíduo à sociedade”, afirmou o atual
vice-presidente do STJ.
Falta grave
Se o preso
comete falta grave, no entanto, ele perde parte dos dias remidos. O STJ entende
(REsp 1.238.189) que essa punição não ofende o direito adquirido, a coisa
julgada ou a individualização da pena, já que a remição é um instituto passível
de revogação. Atualmente, são faltas graves, por exemplo, fuga, rebelião e uso
de celular.
O Tribunal
também entende que a prática de falta grave implica interrupção (isto é,
reinício da contagem) do prazo para progressão de regime, mas não para o
livramento condicional e a comutação da pena (EREsp 1.197.895).
Regime aberto
O STJ rejeita,
porém, a remição por estudo ou trabalho no regime aberto. É a situação
retratada no REsp 1.223.281. Nesse caso, a Justiça do Rio Grande do Sul havia
concedido o “desconto”, por entender que não havia impedimento legal para a
medida. O ministro Og Fernandes reiterou a jurisprudência pacífica do STJ, afirmando
que a lei prevê expressamente o benefício apenas para os regimes fechado e
semiaberto.
O ministro Og
Fernandes foi também o relator do Habeas Corpus 180.940, no qual se
flexibilizou a LEP para permitir que fosse dado ao condenado um prazo razoável
para buscar ocupação lícita.
O texto legal
exige que a prova de disponibilidade de trabalho imediato seja feita antes da
progressão ao regime aberto. Porém, o ministro considerou que a realidade é que
pessoas com antecedentes criminais tenham maior dificuldade no mercado de
trabalho formal, e observar a previsão literal da lei inviabilizaria a
existência do benefício.
Bolsa-masmorra
Fora da esfera
estritamente penal, o STJ também já decidiu sobre a responsabilidade do estado
pela superlotação. Diversos processos trataram do dano moral sofrido pelo
detento submetido a presídio com número de presos muito superior à lotação.
Diante de
posicionamentos diversos entre as Turmas do Tribunal, foi julgado um embargo de
divergência sobre o tema. No EREsp 962.934, prevaleceu o entendimento de que a
concessão de indenização individual ao submetido a superlotação ensejaria
prejuízo à coletividade dos encarcerados, ao reduzir ainda mais os recursos
disponíveis para investimentos públicos no setor.
A avaliação do
ministro Herman Benjamin no REsp 962.934 foi confirmada pela Primeira Seção.
Pela decisão, não faz sentido autorizar que o estado, em vez de garantir
direitos inalienáveis e imprescritíveis titularizados pelos presos, pagasse
àqueles que dispusessem de advogados uma espécie de “bolsa-masmorra” em troca
da submissão diária e continuada a ofensas indesculpáveis.
A decisão não
transitou em julgado. O processo encontra-se suspenso em vista da repercussão
geral do tema, decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso
Extraordinário 580.252.
Fonte: STJ